Eram quase vinte e três horas, observava o fogo da lareira com calma, enquanto limitava meus pensamentos no que se podia ter de mais vago possível. Escuto a maçaneta da porta se movimentar de leve, eu ainda não a tranquei, e aguardo atento meu visitante noturno.
Era ele. Entrou desajeitado, como quem sabe que está fazendo algo errado, mas uma força maior o leva a cometer tal crime. Da penumbra fiz sinal para que se sentasse, ele silenciosamente obedeceu. Se recostou no divã, aparentemente familiarizado. Imaginei ter visto um leve sorriso em seu rosto, não tenho certeza. Deixo dissipar o cansaço sobre meus ombros, ou me movimento como quem o faz. Guardo as mãos sobre meu colo, como um sinal sutil para que prossiga. Aguardo alguns longos minutos, no silêncio da sala, o que se faz ouvir é a sua respiração, e conforme se prolongam os segundos, mais intenso os escuto, sua voz rouca começa a falar, no início, em um tom alterado, elevado, e conforme falava, sua fala se acalmava.
“Sei que não é o momento, mas precisava deste momento... Andei pensando, via com calma as expressões de casa pensamento. Escutei com paciência o sussurrar de todas as ideias, e sei que posso dizer com total convicção: Descobri por onde corre meus ódios e amores.
Enquanto via um ciúme de algo que não é meu correr macio e soberano sobre todos os meus sentimentos, observava que aquilo tudo gerava um outro sentimento, tão intenso quanto o ciúme, o sentimento da indiferença, sei que é complicado tratar isso como sentimento. Mas era o que eu sentia, e tal sentimento evoluía e se espalhava, contaminando tudo que ocupava meu coração, cada partícula dele. Sei que o amor vive em mim de forma extremamente intensa, sei que o ódio vive dessas mesmas regalias. Mas a indiferença? Logo ela? Tão cheia de manias perturbadoras, conseguira também participar também desta condição.
Quero poder dizer sobre meu sentimento em Tantanos, recentemente o tive. Desejei não a mim. Mas sobre qualquer matéria, sobre qualquer ideia. Sobre um pensamento corrompido, sou cheio deles, e os desejei sacrificados. Mas não seria o suficiente, queria poder dizer abertamente. Poder lhe fazer ouvir da minha boca que, seja quem eu for, você o desconhece. Acredito que para se entender alguém, é preciso o conhecer também. Não sou conhecido verdadeiramente por ninguém, nem pelo que digo, ou pelo que faço. Minhas palavras são marionetes de minhas intenções. Não partem do meu íntimo, não se da como voz dos meus sentimentos.
O ódio sorri pra mim, me diz que devo continuar assim, sozinho. Abraço meu ego como quem abraça um urso de pelúcia que o guarda desde a infância. Mas o que ele é pra mim, senão um urso da minha infância? Sempre cuidou dos meus desejos, me abriu o mundo! Me mostrou o quão diferente sou disso tudo, e o quão posso desbravar, me deliciar, viver da graça de todos os pecados. Mantendo intacto e inacessível meu particular e fantástico mundo.
Quando digo ódio, poderia eu estar dizendo sobre qualquer outro sentimento, mas quero o chamar de ódio. Onde moro, o nome do que sinto é esse mesmo.”
Me assusto com o barulho do couro gasto do divã sendo amassado, o som irrompe meus pensamentos e o corpo agora renovado enérgico surge em pé no centro da sala. Ele parecia estar de pé enquanto o som do divã causado pelo brusco movimento do levantar ainda ecoava nos cantinhos escuros desta sala. Ele me observa satisfeito. Seu olhar ainda está lá, diante de mim, mas sua existência já se deixou partir...
Arnaldo Junior